7 de dez. de 2009

A infância que passei no interior de São Paulo. Não tinha pastos, cavalos, nem Manuelzinhos-da-crôa. Sempre uma menina acostumada aos desprazeres da cidade. “Cuidado com carro!” “Não fale com nenhum estranho...” “Olha a hora, já ta atrasada!” Mas há o interior em suas graças. A amiga da rua de cima. Descendo com a caixa cheia de bonecas para que brincássemos na varanda. Sabão em pó e mangueira pra escorregar nos azulejos enquanto durasse o verão. Saquinhos compridos de plástico cheios de suco artificial sendo insistentemente checados no congelador para que fossem saboreados ao ponto. “Quem chegar por último é a mulher do sapo!” Um dia, voltando da aula – escola de uns quarteirões acima. Foi ainda no portãozão do pátio que chutei uma pedrinha cinzenta. De um dedal era seu tamanho. Fui golpeando delicadamente aquele pedacinho. Fiz subir e descer calçadas, atravessar ruas, rolar pela rampa do lado da igreja – meu deus, como era enorme a rampa que hoje subo em quatro passadas largas! – e fui levando a pedrinha adiante. Fiz conhecer o caminho de saída do mundo. Quis mostrá-la o aconchego. Na ladeira da rua Santa Fé, já apegada à companhia que eu levava sem resistências, tive medo que rolasse fugidia. Agachei-me e descobri o amor. Tinha a tal pedrinha, no de dentro de uma lasca, uma tal infinidade de facetas brilhosas que fiquei de cócoras a observar o universo recém-descoberto. Os dedos em pinça colocaram-na no centro de minha palma branca que se fechou enquanto eu corria pra casa querendo banhá-la. Sabonete, água corrente e o reflexo do meu riso no pescoço da torneira da pia. Escolhi uma caixinha – seus quatro lados de um centimetro – com uma espuminha que deixava o leito mais confortável. Assistia televisão, almoçava, tomava banho, ia dormir... deliciosamente acompanhada. Ao sair para aula dava-lhe beijos carinhosos e andava aflita, já com saudades. Não sei bem quando e qual a maneira. Fui esquecendo-me da pedrinha. A caixinha já não me acompanhava pelos cômodos da casa, já não era aberta todos os dias. Nunca mais dei-lhe banhos. Fui esquecendo-me dela. O mundo e a vastidão da imaginação que me ocupava o tempo e as idéias. Fui esquecendo-me. Até que nunca mais a soube. Assim, sem dores, sem despedidas. Sem dar-me conta. Nunca tive um porquinho-da-índia. Aquela pedrinha sim é que foi o meu primeiro namorado. [tornei-me eu pedrinha. tornei-me busca pela tal lasca em mim. uma procura pela fresta que me leve às infinitas facetas brilhantes (...) alguns que viram. e também dormi em caixinhas acolchoadas. outros também esqueceram-me. apesar das despedidas e contas (...) também eu já fui embora.

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7 de dez. de 2009

A infância que passei no interior de São Paulo. Não tinha pastos, cavalos, nem Manuelzinhos-da-crôa. Sempre uma menina acostumada aos desprazeres da cidade. “Cuidado com carro!” “Não fale com nenhum estranho...” “Olha a hora, já ta atrasada!” Mas há o interior em suas graças. A amiga da rua de cima. Descendo com a caixa cheia de bonecas para que brincássemos na varanda. Sabão em pó e mangueira pra escorregar nos azulejos enquanto durasse o verão. Saquinhos compridos de plástico cheios de suco artificial sendo insistentemente checados no congelador para que fossem saboreados ao ponto. “Quem chegar por último é a mulher do sapo!” Um dia, voltando da aula – escola de uns quarteirões acima. Foi ainda no portãozão do pátio que chutei uma pedrinha cinzenta. De um dedal era seu tamanho. Fui golpeando delicadamente aquele pedacinho. Fiz subir e descer calçadas, atravessar ruas, rolar pela rampa do lado da igreja – meu deus, como era enorme a rampa que hoje subo em quatro passadas largas! – e fui levando a pedrinha adiante. Fiz conhecer o caminho de saída do mundo. Quis mostrá-la o aconchego. Na ladeira da rua Santa Fé, já apegada à companhia que eu levava sem resistências, tive medo que rolasse fugidia. Agachei-me e descobri o amor. Tinha a tal pedrinha, no de dentro de uma lasca, uma tal infinidade de facetas brilhosas que fiquei de cócoras a observar o universo recém-descoberto. Os dedos em pinça colocaram-na no centro de minha palma branca que se fechou enquanto eu corria pra casa querendo banhá-la. Sabonete, água corrente e o reflexo do meu riso no pescoço da torneira da pia. Escolhi uma caixinha – seus quatro lados de um centimetro – com uma espuminha que deixava o leito mais confortável. Assistia televisão, almoçava, tomava banho, ia dormir... deliciosamente acompanhada. Ao sair para aula dava-lhe beijos carinhosos e andava aflita, já com saudades. Não sei bem quando e qual a maneira. Fui esquecendo-me da pedrinha. A caixinha já não me acompanhava pelos cômodos da casa, já não era aberta todos os dias. Nunca mais dei-lhe banhos. Fui esquecendo-me dela. O mundo e a vastidão da imaginação que me ocupava o tempo e as idéias. Fui esquecendo-me. Até que nunca mais a soube. Assim, sem dores, sem despedidas. Sem dar-me conta. Nunca tive um porquinho-da-índia. Aquela pedrinha sim é que foi o meu primeiro namorado. [tornei-me eu pedrinha. tornei-me busca pela tal lasca em mim. uma procura pela fresta que me leve às infinitas facetas brilhantes (...) alguns que viram. e também dormi em caixinhas acolchoadas. outros também esqueceram-me. apesar das despedidas e contas (...) também eu já fui embora.

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