26 de nov. de 2009
Algumas linhas mal destacadas de Dom Casmurro.
Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos
respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas
é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo
alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo.
Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não
durmo mal.
[...]
Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a
nossa casa e o trecho da rua em que morávamos. Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o
que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das
luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora é que eu ia começar a minha ópera. “A vida é uma
ópera”, dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia a definição, em
tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha a pena dá-la; é só um capítulo.
[...]
Pois, francamente, só agora entendia a emoção que me davam essas e outras
confidências. A emoção era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu a
buscasse nem suspeitasse. Os silêncios dos últimos dias, que me não descobriam nada,
agora os sentia como sinais de alguma coisa, e assim as meias palavras, as perguntas
curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de recordar a infância. Também
adverti que era fenômeno recente acordar com o pensamento em Capitu, e escutá-la de
memória, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em minha casa,
prestava mais atenção que dantes, e, segundo era louvor ou crítica, assim me trazia
gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando éramos somente companheiros de
travessuras. Cheguei a pensar nela durante as missas daquele mês, com intervalos, é
verdade, mas com exclusivismo também.
Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a
mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que
pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade não valeria mais que
ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu
amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de
abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si
própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer outra
sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente também por ser
a primeira.
[...]
Não alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o conselho de
Capitu. Então, como eu quisesse ir para dentro, prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do calor
21
e da próxima festa da Conceição, dos meus velhos oratórios, e finalmente de Capitu. Não disse mal dela;
ao contrário, insinuou-me que podia vir a ser uma moça bonita. Eu, que já a achava lindíssima, bradaria
que era a mais bela criatura do mundo, se o receio me não fizesse discreto. Entretanto, como prima
Justina se metesse a elogiar-lhe os modos, a gravidade, os costumes, o trabalho para os seus, o amor que
tinha a minha mãe, tudo isto me acendeu a ponto de elogiá-la também. Quando não era com palavra, era
com gesto de aprovação que dava a cada uma das asserções da outra, e certamente com a felicidade que
devia iluminar-me a cara. Não adverti que assim confirmava a denúncia de José Dias, ouvida por ela, à
tarde, na sala de visitas, se é que também ela não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então senti
que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me,
fazer o ofício de todos os sentidos. Ciúmes não podiam ser; entre um pirralho da minha idade e uma viúva
quarentona não havia lugar para ciúmes. É certo que, após algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e
até lhe fez algumas críticas, disse-me que era um pouco trêfega e olhava por baixo; mas ainda assim, não
creio que fossem ciúmes. Creio antes... sim... sim, creio isto. Creio que prima Justina achou no espetáculo
das sensações alheias uma ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que
narram.
[...]
Tinha então pouco mais de dezessete... Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fezme
ir atrás da pena, e chego quase ao fim do papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não há
mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em
resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão por anos, e assim chegaremos ao fim. Um dos
sacrifícios que faço a esta dura necessidade é a análise das minhas emoções dos dezessete anos. Não sei
se alguma vez tiveste dezessete anos. Se sim, deves saber que é a idade em que a metade do homem e a
metade do menino formam um só curioso. Eu era um curiosíssimo, diria o meu agregado José Dias, e não
diria mal. O que essa qualidade superlativa me rendeu não poderia nunca dizê-lo aqui, sem cair no erro
que acabo de condenar; a análise das minhas emoções daquele tempo é que entrava no meu plano. Posto
que filho do seminário e de minha mãe, sentia já debaixo do recolhimento casto uns assomos de
petulância e de atrevimento; eram do sangue, mas eram também das moças que na rua ou da janela não
me deixavam viver sossegado. Achavam-me lindo, e diziam-mo; algumas queriam mirar de mais perto a
minha beleza, e a vaidade é um princípio de corrupção.
26 de nov. de 2009
Algumas linhas mal destacadas de Dom Casmurro.
Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos
respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas
é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo
alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo.
Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não
durmo mal.
[...]
Mas é tempo de tornar àquela tarde de novembro, uma tarde clara e fresca, sossegada como a
nossa casa e o trecho da rua em que morávamos. Verdadeiramente foi o princípio da minha vida; tudo o
que sucedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em cena, o acender das
luzes, o preparo das rabecas, a sinfonia... Agora é que eu ia começar a minha ópera. “A vida é uma
ópera”, dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia a definição, em
tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha a pena dá-la; é só um capítulo.
[...]
Pois, francamente, só agora entendia a emoção que me davam essas e outras
confidências. A emoção era doce e nova, mas a causa dela fugia-me, sem que eu a
buscasse nem suspeitasse. Os silêncios dos últimos dias, que me não descobriam nada,
agora os sentia como sinais de alguma coisa, e assim as meias palavras, as perguntas
curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de recordar a infância. Também
adverti que era fenômeno recente acordar com o pensamento em Capitu, e escutá-la de
memória, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nela, em minha casa,
prestava mais atenção que dantes, e, segundo era louvor ou crítica, assim me trazia
gosto ou desgosto mais intensos que outrora, quando éramos somente companheiros de
travessuras. Cheguei a pensar nela durante as missas daquele mês, com intervalos, é
verdade, mas com exclusivismo também.
Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a
mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que
pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade não valeria mais que
ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu
amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de
abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si
própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer outra
sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente também por ser
a primeira.
[...]
Não alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o conselho de
Capitu. Então, como eu quisesse ir para dentro, prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do calor
21
e da próxima festa da Conceição, dos meus velhos oratórios, e finalmente de Capitu. Não disse mal dela;
ao contrário, insinuou-me que podia vir a ser uma moça bonita. Eu, que já a achava lindíssima, bradaria
que era a mais bela criatura do mundo, se o receio me não fizesse discreto. Entretanto, como prima
Justina se metesse a elogiar-lhe os modos, a gravidade, os costumes, o trabalho para os seus, o amor que
tinha a minha mãe, tudo isto me acendeu a ponto de elogiá-la também. Quando não era com palavra, era
com gesto de aprovação que dava a cada uma das asserções da outra, e certamente com a felicidade que
devia iluminar-me a cara. Não adverti que assim confirmava a denúncia de José Dias, ouvida por ela, à
tarde, na sala de visitas, se é que também ela não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então senti
que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me,
fazer o ofício de todos os sentidos. Ciúmes não podiam ser; entre um pirralho da minha idade e uma viúva
quarentona não havia lugar para ciúmes. É certo que, após algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e
até lhe fez algumas críticas, disse-me que era um pouco trêfega e olhava por baixo; mas ainda assim, não
creio que fossem ciúmes. Creio antes... sim... sim, creio isto. Creio que prima Justina achou no espetáculo
das sensações alheias uma ressurreição vaga das próprias. Também se goza por influição dos lábios que
narram.
[...]
Tinha então pouco mais de dezessete... Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fezme
ir atrás da pena, e chego quase ao fim do papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não há
mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em
resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão por anos, e assim chegaremos ao fim. Um dos
sacrifícios que faço a esta dura necessidade é a análise das minhas emoções dos dezessete anos. Não sei
se alguma vez tiveste dezessete anos. Se sim, deves saber que é a idade em que a metade do homem e a
metade do menino formam um só curioso. Eu era um curiosíssimo, diria o meu agregado José Dias, e não
diria mal. O que essa qualidade superlativa me rendeu não poderia nunca dizê-lo aqui, sem cair no erro
que acabo de condenar; a análise das minhas emoções daquele tempo é que entrava no meu plano. Posto
que filho do seminário e de minha mãe, sentia já debaixo do recolhimento casto uns assomos de
petulância e de atrevimento; eram do sangue, mas eram também das moças que na rua ou da janela não
me deixavam viver sossegado. Achavam-me lindo, e diziam-mo; algumas queriam mirar de mais perto a
minha beleza, e a vaidade é um princípio de corrupção.
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